Análise do Filme BELEZA OCULTA

Logo, em suas primeiras falas, o protagonista do filme BELEZA OCULTA, de David Frankl, manifesta sua admiração pelas abstrações Tempo, Amor e Morte, que para ele são os três elementos que conectam todos os seres humanos. Isto bem antes da morte de sua filha, Olivia, que é o evento que causa em Howard (personagem principal da trama), uma depressão que parece não ter fim. Howard pensa em sua filha, em sua relação com ela, sonha com a menina e só vive este luto constante há 2 anos. Neste momento, resolve escrever cartas direcionadas às três abstrações, nas quais colocava valores e citava em suas motivações para a equipe de sua empresa. Porém após a morte da filha passa a odiá-los e põe toda a sua raiva em suas palavras nas cartas. Vai até a caixa de correio e de fato despacha as cartas. Sua vontade de manifestar seu descontentamento, decepção e inconformidade são levados a sério e ele realmente manda cartas sinceras ao Amor, a Morte e ao Tempo. Tal atitude nos leva a reflexão sobre uma regressão vivida durante o luto, onde o personagem quer se comunicar com algo abstrato, como fazem as crianças. Howard tinha uma vida estruturada, com sucesso no trabalho, e com uma família inicialmente feliz, até a manifestação da doença (um tipo raro de câncer) vivida por sua filha. Em psicanálise, estuda-se a necessidade de preservar aquilo que traz prazer e de rechaçar a dor. Freud já falava deste processo quando aborda a clivagem do ego no processo defensivo. Mas é Melaine Klein quem traz o conceito de que as clivagens não estão somente nos objetos de desejo, mas relacionam-se também com as pulsões, com as relações com o objeto e com aspectos do ego. Howard, ao perder sua filha, passa a uma posição esquisoparanóide, por regressão ao ponto de fixação da libido no objeto principal de desejo do ego (sua filha). Ele acha que está certo, que alguém ou algo (as abstrações) possuem culpa pela morte da filha, e ele é a vítima. Assim, assume este papel de forma inconsciente e arraigada, deixando tudo e a todos, não se importando com os outros ou consigo mesmo, deixando de comer, trabalhar ou dar atenção aos amigos ou a qualquer um. Numa cena nos primeiros momentos do filme, anda de bicicleta pela contra mão de ruas movimentadas, sem se importar nem mesmo com sua segurança ou sua vida. De acordo com Zimmerman (1999), é comum a passagem da posição esquisoparanóide para a posição depressiva. Temos elementos suficientes para identificar este movimento no personagem de Howard. Mais uma característica deste fenômeno é a falta de descarga de sentimentos que o pai da menina Olivia vive nestes dois anos, sem falar com ninguém, sem procurar ajuda, mesmo sabendo que sua ex esposa começou um trabalho de ajuda mútua entre pais que perderam seus filhos. Tais sentimentos são intoleráveis e a frustração é muito dolorida, quando não há descarga dos sentimentos depressivos. Continuando a trama, os amigos e o sócio de Howard precisam que ele ao menos se envolva nas questões da empresa, onde é sócio majoritário, pois estão numa derrocada e precisam tomar providências acerca da aparente apatia de Howard. É quando surge a idéia de Witt, seu sócio e melhor amigo, de contratar atores para responderem pessoalmente às cartas escritas por Howard à Morte, ao Tempo e ao Amor, numa tentativa de fazê-lo entender que deve voltar a viver, mesmo com a dor que carrega. O filme nos traz cenas e diálogos profundos entre as abstrações e Howard, mas também nos mostra que cada um dos três amigos possuem questões pessoais, cada qual com um destes elementos abstratos. Witt, seu sócio é aquele que mantém contato com a atriz que faz o Amor. Ele é recém-divorciado e sua filha demonstra desprezo por ele ter traído sua mãe. Simon possui um câncer em última fase e quem lida com ele todo o tempo é a atriz que faz a Morte. Ainda temos a Claire, personagem que passou muito tempo de sua vida dedicado ao trabalho e não se deu a oportunidade de casar e formar família. Agora busca por um meio de realizar seu desejo e é ela quem dá instruções ao ator que desempenha o papel do Tempo para tentar trazer Howard à realidade novamente. Sabe-se que todos possuímos um narcisismo saudável ou não, desde quando bebês, descobrimos as primeiras relações objetais. Os três amigos de Howard lidam com o modo como farão ele voltar a si, de uma forma narcisista pois manipulam os sentimentos do protagonista, mandando atores interagirem com ele, filmando estes encontros e apagando os atores das filmagens para que Howard pareça insano e incapaz de gerir sua própria empresa. Esta é a mais evidente demonstração de narcisismo, num universo do senso comum, mostrado no filme. Contudo, a situação reverte-se pois, na verdade, Morte, Tempo e Amor, não eram exatamente atores e sim, as próprias manifestações dos elementos e isso fica claro quando fazemos uma segunda visita ao filme e vemos que o primeiro contato de Witt com Amy (Amor) é dentro de sua empresa, ela chama a atenção dele com uma frase publicitária e o faz ir atrás dela até encontrar os outros dois, Tempo e Morte, num teatro ensaiando para um espetáculo cuja realização dependia de dinheiro que os atores não possuem (na verdade, a peça nunca seria realizada). Além disso, ao final, vimos o encontro da esposa de Howard com a Morte, no corredor do hospital onde sua filha viria a morrer. É dela, Morte, a frase que dá nome ao filme: “Não se esqueça da Beleza Oculta”. Ou Collateral Beauty (Beleza Colateral), nome original do filme em inglês. Para finalizar, a cena final deixa claro que os três abstratos tão presentes em nossas vidas eram reais ao menos para ele, Howard, que passeia com a esposa, após superar a depressão e aceitar o evento traumático e sua dor. Ele olha para trás e vê Morte, Tempo e Amor, no alto de um pequeno viaduto de parque, felizes com sua recuperação, mas no que sua esposa olha, eles não estão lá. O traço narcisista de Howard fica evidente, pois em sua egotripe, ele não se importa com mais nada, não vê que seus funcionários, a quem ele dizia amar poderiam ser demitidos, não se importa nem mesmo com a mãe de sua filha, afastando-se totalmente, não acha que precisa de ajuda e acaba nesta depressão insuportável até que resolve, dois anos depois, fazer algo e voltar a ter uma vida, mesmo lidando com a dor da perda de sua amada filha. O período em que esteve assim, Howard deve a uma ferida narcísica característica de quem perde o objeto que traz o retorno da fixação de sua libido. Freud em sua obra Luto e Melancolia (1917) trata da face narcisista da depressão. Neste contexto, o narcisismo aparece como uma total espera pelo retorno do objeto que tem intenso investimento da libido do sujeito, ou seja, o outro é o principal objeto libidinal do indivíduo, e sua identificação com ele se dá através do retorno, tomado deste investimento da libido. A perda do objeto é negada, recusada pelo sujeito, pois é como se ele estivesse perdido a si mesmo. Existe o reconhecimento do outro, porém, como uma projeção do eu elevado a um eu ideal. Portanto, a retirada do objeto é um processo enormemente penoso, pois é como se fosse o abandono de uma satisfação, um prazer contínuo que desde construído, foi instalado e acomodado como parte deste eu, e quanto maior o tempo de existência desta satisfação, maior o sofrimento na perda. No narcisismo o indivíduo tem a si mesmo como objeto de amor, como o eu ideal, e na escolha narcísica de objeto, este escolhe um outro que representa a imagem reflexa do próprio eu. O narcisista crê que é outro que está à sua frente quando, na verdade, é ele mesmo. A perda do objeto provoca o retorno de todo o investimento direcionado a esse objeto para o eu. Toda base desse processo é tocada pelo narcisismo, o outro é algo que diz dele mesmo. Este é o processo pelo qual nosso protagonista de Beleza Oculta passa, no contexto de narcisismo ao qual este artigo pretende relacionar. A perda de sua filha, seu amor maior, implica numa destruição do eu. A identificação narcísica com aquela satisfação objetal é tanta que a angústia da perda deste amor chega ao ponto de não se conseguir viver após o desaparecimento do objeto. Mas Howard teve a oportunidade de descarregar sua raiva, exatamente onde ele a direcionava, pois para ele, a culpa da falta de sua filha, a responsabilidade por ele não mais tê-la em seus braços ou segurar sua mão, era canalizada para o Amor, o Tempo e a Morte. Esta descarga ajuda na recomposição da pulsão de vida e capacita nosso personagem a forçar-se numa tentativa de nova vida, não sem sua dor, porém ciente de que existe para ele lugar naquele vazio deixado pela perda da filha, bastando, embora de forma difícil e dolorosa, adotar a nova realidade e, segundo quer nos passar o diretor, observando a beleza que está ao lado, que nos fica oculta em momentos de tamanha dor. O filme ainda faz referência a esta beleza, nas cenas externas de ruas decoradas de luzes de natal, no amor de Howard e sua esposa que sublima sua dor, ajudando outras pessoas, sempre aceitando a dor com a qual convive, e nos diálogos que Morte, Amor e Tempo tem com cada pessoa de quem foram cuidar neste majestoso filme, bem observado e adequadamente indicado para conclusão deste módulo.

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